Posto aqui um conto meu publicado em uma das edições do jornal Cinform nas Escolas (que merece retornar como publicação de divulgação do trabalho de docentes e discentes nas escolas sergipanas, e de temas voltados ao cotidiano escolar). Ilustrado por Lucas Santos Guimarães.
Aqueles dois amigos sempre faziam a mesma viagem do interior até a cidade de Aracaju, todo o santo dia. Trabalhavam juntos na capital. Aliás, a primeira lembrança de cada um deles era com o outro a tiracolo. Eram quase irmãos. E tiravam a maior onda com tudo e com todos. Curtiam mesmo a presença um do outro.
O novo trabalho, numa dessas grandes empresas de cidade em crescimento, fazia com que se vissem desde cedo, às quatro da manhã, quando se encontravam no ponto para pegar o ônibus, ou um transporte alternativo.
Num certo dia, porém, como se o assunto das prosas tivesse caído na mesmice, um deles acabou por propor um desafio que, além de mudar um pouco a rotina, ainda proporcionaria algo que o serviço quase braçal lhes renegava: o exercício da mente.
- E se, amanhã, a partir do momento em que nos encontrarmos, começássemos uma prosa diferente? – sugeriu um.
- De que jeito? – quis saber o outro.
- A cada indagação de um o outro deveria responder com uma palavra a mais do que o primeiro usou, e assim sendo até que um não consiga formar uma resposta ou comentário que siga essa regra. – explicou o desafiador.
- Ôxe! Como assim? - fez cara de espanto o duvidoso.
- Por exemplo, eu falo “oi”; aí você responde “como vai”; e eu digo “vou bem, cabra”...e aí vai. – ao terminar sua explicação já avistavam o ônibus que os transportaria à capital.
- E se o outro ficar sem resposta? – emendou o ressabiado.
- Bem, então ou faz um comentário que siga a mesma regra ou perde e paga o almoço do vencedor. Topa? – desafiou o esclarecedor.
Já estavam dentro do ônibus quando o pacto foi selado. No dia seguinte começaria o “duelo”. Era mais uma brincadeira que outra coisa, os dois sabiam disso. Mas como dois homens que não resistem a uma competição, quer seja atrás de uma bola quer seja no bate boca, não viam a hora de ouvir o grito de largada dessa nova corrida. Quem será que pediria arrêgo primeiro? Quem se atrapalharia nas contas e poria tudo a perder? Era uma brincadeira saudável, como todas as brincadeiras entre amigos.
No dia seguinte, logo cedo, iam os dois em direção ao ponto onde se encontravam sempre. Ao se aproximarem, o mais afoito já foi se adiantando:
- Oi!
- Bom dia!
- Como vai você?
- Vou bem, e você?
- Vou como Deus quer, né?
- Tá pronto pra pagar o almoço? – acrescentou à pergunta um tom de gozação.
- Hein?! Só se for com seus vales? – devolveu o outro com um tom maior.
Daí o empolgado/apressado deu um pulo de alegria.
- Ahá! Ganhei, mané!
- E por que, posso saber?
- Você repetiu o número de palavras, meu filho! Não sabe mais contar não?
- Tá louco, seu chibungo? Eu falei sete. – E contando nos dedos repetiu – “hein, só, se, for, com, seus, vales”. Olha aí!
- E quem disse que esse “hein” vale?
- Mas é claro que vale! É uma “interjeição de indagação”. – falou o com cara de sabichão.
- Hein?! – quis saber o injustiçado.
- Olha aí, de novo, a in-da-ga-ção! – enrolou o esperto.
- E que cabrunco é isso?
- Ah, se você não sabe é por que não estudou como devia.
- Eu acho que você é que deve ter estudado demais...estudado ERRADO demais. – enfatizou o outro.
- Então essa não valeu!
- Tá certo! Vamos ver amanhã!
- Combinado!
E, assim, voltaram à sua rotina. Trabalharam muito pelo dia e quando chegaram em casa...Bem, aí cada um pegou uma gramática e estudou até que o cansaço deixasse (o que não foi muito). No dia seguinte, bem cedo, lá estavam novamente. Dessa vez mal conseguiam parar de bocejar devido à noite mal dormida. Ambos estavam ansiosos por aquele momento.
Ao se encontrarem, porém, não se ouvia nenhum pio dos dois. Estavam mudos. Já se olhavam de canto de olho, até que um esboçou um sorriso e falou:
- Como vai o estimado amigo que parece ter perdido a noite com essas olheiras tão profundas?
O colega, ao ouvir tamanha sentença arregalou os olhos e se viu mais que aperreado. Não esperava por aquilo. Tinha perdido seu tempo debruçado nos livros, já que agora o problema era mais matemático que de português. Não conseguiu fazer a conta de quantas palavras o companheiro tinha pronunciado. E quando viu no rosto satisfeito do outro um sorriso de sarcasmo, se irritou e resmungou:
- Num conto, num conto, num conto! Foi sacanagem sua, seu tratante.
- Ô pêga! O cara tá azuado mesmo! – tirou onda o agora tratante.
- Claro! E não é pra estar?
- Calma, meu filho! Ninguém falou que a primeira frase tinha que ser com uma palavra só. Tô certo ou tô errado?
- Bem...tá certo, mas...
- Mas o quê?
- Ah! Não deixa de ser sacanagem!
- Então vamos parar por aqui, antes que nossa amizade seja abalada. Eu propus a brincadeira só pra gente sair do marasmo, pra variar um pouco. Mas se você já está se estressando na segunda rodada, a partir da próxima é capaz da gente se pegar no tapa. O que você acha?
- Tá certo! Além do mais é uma covardia esse tipo de brincadeira entre homens. Já ouvi falar na televisão que homem não consegue manter a atenção em duas coisas ao mesmo tempo. Como é que você quer que eu conte as palavras e ainda compreender o que você está dizendo. Minha cuca entrou em curto! Acho que meus neurônios ainda estão enroscados uns nos outros!
O ônibus já vinha chegando. Ao parar no ponto o aperreado/perdedor se adiantou a subir enquanto o outro ia atrás. Ao se sentarem, cada um em uma poltrona, aquele ainda ouviu do amigo:
- Mas, hoje o almoço ainda é seu!
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